As chaves para entender o que se passa nas Honduras
1. O que estava convocado para Domingo, o que os golpistas impediram, não foi a reeleição permanente de Zelaya nem a presidência vitalícia. Nem sequer a reforma da Constituição. O que era votado era uma consulta não vinculativa para perguntar aos hondurenhos se gostariam que nas próximas eleições, nas de Novembro, se votasse também a criação de uma Assembleia Constituinte que reformasse a Carta Magna. Em resumo: era algo aparentemente tão inofensivo como perguntar se se podia perguntar para reformar a constituição, algo que, por outro lado, a própria constituição hondurenha impede [1].
2. A actual constituição das Honduras estabelece um mandato único para os presidentes de quatro anos. Zelaya termina o seu este ano e, em qualquer caso, não se poderia apresentar à reeleição porque em Novembro não estaria aprovada a reforma constitucional que ele propõe. Quando muito, teria sido possível que nessa data se votasse a possibilidade de uma reforma constitucional. Ele mesmo tem negado em várias entrevistas que tenha intenção de se apresentar à reeleição [2].
3. O parlamento está enfrentado com o presidente entre outras coisas porque Zelaya, um terratenente acomodado e conservador que concorreu às eleições pelo Partido Liberal, fez depois uma política de esquerda e aliou-se com Hugo Chávez [3]. Nas Honduras governam desde há décadas dois partidos, o Liberal – de centro direita – e o Partido Nacional – de direita. Há dias, o Congresso aprovou uma lei para proibir que se celebrasse qualquer tipo de consulta 180 dias antes de umas eleições. É uma norma ad hoc, feita para impedir o referendo de Zelaya.
4. A constituição hondurenha foi redigida em 1982 [4], sob a tutela de uma ditadura militar que pactuou uma transição. É bastante fácil de reformar – basta uma maioria de dois terços do Congresso, aliás o texto constitucional está cheio de correcções – salvo em alguns pontos, que se consideram irreformáveis, como a unidade da pátria ou a não reeleição do presidente (o modelo de presidente não reelegível e não reformável impôs-se no princípio do século depois de várias guerras civis por isso provocadas). De facto, o seu artigo 4 qualifica a «alternância no exercício da Presidência da República» como obrigatória e qualifica a infracção desta norma como «delito de traição à Pátria», algo a que se agarram os golpistas argumentando que Zelaya, ao propor uma reforma, é já um traidor. Zelaya argumenta que não é assim, já que ele não tem intenção de se voltar a candidatar, que é o que o qualificaria de traidor. Mais claro é o artigo 239: «O cidadão que tenha desempenhado a titularidade do Poder Executivo não poderá ser Presidente ou Vice-presidente da República. Aquele que viole esta disposição ou proponha a sua reforma, bem como aqueles que o apoiem directa ou indirectamente, cessarão de imediato no desempenho dos seus respectivos cargos e ficarão inabilitados por dez (10) anos para o exercício de toda a função pública.»
5. O argumento que Zelaya utilizou para prosseguir com a sua consulta, apesar das sentenças, da Constituição e das novas leis contra, era que não se tratava de um referendo, mas de uma sondagem. Nas Honduras, o voto é obrigatório. Não assim na consulta de Zelaya, onde o voto era opcional. Para contornar as sentenças, a “sondagem” ia ser realizada pelo equivalente hondurenho ao CIS, o Instituto Nacional de Estatística. A oposição argumentava que a consulta estaria manipulada, pois a contagem seria feita por um organismo que depende do presidente.
6. O Supremo Tribunal que ordenou a expulsão de Zelaya do país (segundo a surrealista explicação dos golpistas) não é um Supremo Tribunal equiparável aos europeus. Para começar, porque o seu nome completo é Supremo Tribunal Eleitoral, a sua composição, como a do Supremo Tribunal de Justiça, emana do poder legislativo (isto é, do parlamento, dos partidos que estão enfrentados com Zelaya, os golpistas que hoje deram por bom o golpe militar) e entre os seus poderes está regular as eleições mas não deter os presidentes eleitos. Não é a primeira velhacada desta “instituição”. Quando Zelaya, inesperadamente, ganhou as eleições, o STE atrasou durante mais de um mês o seu acesso ao poder com desculpas técnicas.
7. Como juridicamente não está estabelecido que o presidente deixe de sê-lo porque o exército o deteve em sua casa de madrugada para o obrigar a abandonar o país, os golpistas falsificaram uma carta de renúncia de Zelaya – que o seu suposto autor negou – assinada há dias e onde se assegura que deixa o cargo por motivos de saúde. O Congresso votou hoje a sua destituição e a nomeação de um novo presidente utilizando-a como argumento.
8. A oposição política ao presidente há algum tempo que utilizava o poder judicial para boicotar o seu governo. Entre os casos mais surrealistas está o de um plano para reduzir o consumo de combustível e a contaminação, que foi denominado “Hoje não circula”, a imitação de outro similar do México DF, que funciona desde há anos [5]. Zelaya pretendia obrigar todos os carros a pararem um dia por semana. O Supremo Tribunal de Justiça declarou isso inconstitucional [6].
Nota:
[1] Ernesto Paz Aguilar, La Reforma Política Electoral en Honduras (pdf).
[2] Pablo Ordaz, «El jefe del Ejército desobedeció a su comandante, que soy yo» (Entrevista com Manuel Zelaya Rosales, presidente das Honduras), El País, 28/06/2009.
[3] Pere Rusiñol, El oligarca que cambió de bando, Público.es, 29/06/2009.
[4] pdba.georgetown.edu/Constitutions/Honduras/hond05.html.
[5] es.wikipedia.org/wiki/Hoy_no_circula.
[6] Suspenden plan «Hoy no circula» en Honduras, Radio La Primeríssima, 09/04/2008.
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