E O RIO DE JANEIRO CONTINUA LINDO...
Resumo do artigo que foi originalmente apresentado como Conferência na Academia Brasileira de Letras, em 3 de julho de 2008. A “acumulação social da violência” refere-se a um processo social que já dura cerca de meio século aproximadamente que ocorre na cidade do Rio de Janeiro e em sua área de influência imediata – a região metropolitana do Rio – mas pode, em alguns momentos, alcançar outras cidades do estado, algumas capitais de outros estados e outras cidades brasileiras, como já aconteceu, adquirindo potencialmente abrangência nacional. Embora apresente semelhanças com o caso do Rio, define-se sempre por compartilhar com o Rio algumas dimensões comuns, cujo desenvolvimento local particulariza-se em suas diferenças. São aqui apresentados, em linhas gerais, os resultados alcançados em pesquisas do autor sobre esse processo no Rio de Janeiro.
Dizia-se com naturalidade que o Brasil era um país povoado por gente cordial, um país sem violência, um país pacifico. Talvez isso explique, em parte, a pouca atenção reservada a esse campo temático nas ciências sociais, quando nos Estados Unidos e na Europa Ocidental as pesquisas sobre a criminalidade alcançavam o seu apogeu acadêmico. Hoje sabemos, passados 30 e tantos anos, que havia muito de ilusão nessa auto-concepção que se tinha do nosso país. Afinal, nela, nós recalcávamos, como se estivessem superados, séculos de escravidão, séculos daquela escravidão que permaneceu vigente como uma das últimas do mundo a ser abolida.
Somos então levados a confrontar os fatores que, efetivamente, contribuíram para trazer de volta à consciência aquela violência que fazia parte da nossa formação social e que se encontrava por algum tempo esquecida, recalcada nas nossas representações coletivas.
Hoje não há mais quem possa dizer que o Brasil é um país pacífico. Hoje não há mais quem possa dizer que nós somos um povo cordial, que não conhece violências e guerras. Cordiais e violentos conseguimos de algum modo fazer conviver nessa antinomia, nosso atual dilema civilizatório.
Não é possível, não é imaginável que um país que tenha a capacidade de processar razoavelmente os conflitos e os crimes no âmbito da Justiça, assista à demanda, cada vez maior, hoje presente tanto na mídia quanto em expressivos segmentos da população, para soluções de força privadas ou para soluções de força ilegais (justiçamentos, tortura, fazer a justiça com as próprias mãos). Ao contrário do criminoso hegeliano, que realiza sua liberdade tanto ao cometer o crime quanto ao ser condenado a perdê-la, o que supõe uma trajetória racional-legal tanto do criminoso quanto dos procedimentos de criminação/incriminação que lhe condenaram, o nosso criminoso já perdera sua liberdade antes de cometer o crime e, ao cometê-lo, procura resgatá-la, atualizando-a no crime, identificando-se com ele, tornando-se seu sujeito potencial a ponto de, no limite, reconhecer-se em sua superioridade moral. Ao fazê-lo, no entanto, alienam-se completamente nos dispositivos que o as sujeitam ao Código Penal.
É comum no Brasil o sujeito ganhar o nome do artigo do Código que transgrediu: “171” (estelionato), “121” (assassino), “157” (assaltante), ”213” (estuprador), “12” (traficante) etc. A existência de antecedentes criminais em um sujeito sob julgamento, no Brasil, leva-o quase sempre à prisão provisória (que, no Brasil, é diferenciada por privilégios como o instituto da “prisão especial”) e pode ser decisiva para sua condenação, constituindo-se abusivamente em “prova” fundamental. Do mesmo modo, um sujeito em prisão provisória ou preventiva tem dez vezes mais chance de ser denunciado do que ter seu caso arquivado e três vezes mais chance de ser condenado do que absolvido (Vargas, 2004).
São também comuns as diferentes formas de “antecipação da pena”, através da prisão provisória, que pode ser prolongada até a sentença – o que pode, em casos de flagrante delito, levar anos.
Todo esse processo implica na existência de um intérprete virtual, um acusador último, que em rodízio ocupará as várias posições, mas que restará sempre crente de que ele próprio não cederá à sujeição.
O fundamento da existência desse acusador último é a naturalização da desigualdade social em proporções tais que parte da sociedade poderá defender a tortura e a eliminação física (judicial ou extra-judicial) dos sujeitos criminais, simplesmente porque está segura – imaginariamente – de que essa regra não será jamais aplicada a ela. Essa segurança ontológica, que lhe permite afirmar-se “pessoa de bem” ou “acima de qualquer suspeita”, é a contraparte necessária da sujeição criminal.
No entanto, a acumulação social da violência no Rio de Janeiro ganhou tal abrangência, que furtos, tráfico e crimes não intencionais (como atropelamentos) e mesmo suicídios passam a ser incorporadas na representação da “violência urbana”.
O caso do tráfico é especialmente relevante, pois lhe é atribuída a principal responsabilidade pelo aumento da violência, seja pelo suposto efeito das drogas em seus consumidores, seja pelos crimes que jovens pobres cometem para comprarem essas drogas, seja, finalmente, pelos conflitos internos a esse mercado. Nesse caso, sempre pareceu estranho que o mercado varejista de drogas, que no Rio de Janeiro desenvolveu-se nas favelas e outras aglomerações urbanas de baixa renda, incorporassem um recurso tão constante à violência, sem comparação em outras cidades de outros países.
Apenas no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, tornou-se comum uma extensa territorialização do comércio de drogas. Esses territórios, operados por traficantes varejistas, são constituídos, no Rio, pelos pontos de venda nos morros (“bocas de fumo”), defendidos por “soldados” armados com fuzis, metralhadoras, granadas e até, em alguns casos, com armas anti-aéreas, tudo isso em meio urbano, com alta densidade demográfica e constantes incursões policiais. Aos conflitos armados com a polícia, seguem-se os conflitos armados com outras quadrilhas, que tentam invadir e tomar o “território” do outro.
Nos últimos trinta anos, uma verdadeira corrida armamentista levou a uma concentração de armamentos de guerra nesses morros e favelas que até hoje ainda desafia a polícia e as forças armadas. Mas não há qualquer objetivo político ou coletivo em defender esses “territórios”, o interesse é apenas econômico e militar. Um viés “guerreiro” incorporou-se a essas redes de pequenos traficantes, que se enfrentam entre si e à polícia, demarcando-se por facções sustentadas por sua função como agências de proteção dentro do sistema penitenciário. São em geral jovens, com média de idade entre 15 e 19 anos, e raramente se entregam à polícia: preferem correr o risco da morte, num enfrentamento armado com a polícia, a renderem-se e ir à prisão.
Não encontro explicação melhor para isso que não seja o efeito perverso da sujeição criminal, que criou a desconfiança generalizada, entre traficantes e ladrões – a clientela principal das prisões brasileiras – de que “bandido bom é bandido morto”.
A acumulação social da violência continua no Rio de Janeiro, com a migração de parte dos jovens traficantes para o assalto a pedestres, ônibus e carros, e com o aparecimento de uma nova modalidade de “esquadrão da morte”, grupos de policiais militares que impõem a oferta de proteção em favelas e conjuntos habitacionais pobres, com a promessa de matar os bandidos locais, em troca do pagamento regular de uma mensalidade. Os moradores que se recusam à extorsão têm suas casas invadidas e depredadas, quando não são ameaçados de vingança. E esses grupos, chamados pela imprensa de “milícias”, pretendem substituir os traficantes, assumindo inclusive parte do comércio ilegal que esses praticavam.
Como muitos dizem, com frieza e satisfação, no Brasil, “Menos um!” quando matam um ladrão. Muitos também não avaliam que, ao fazê-lo, participam ativamente de seu assassinato e da indiferença em esclarecê-lo e punir seus autores. Tratam-no como alguém “que pode ser morto”, como no Homo Sacer de que nos fala Agamben. Participam, também, ativamente da possibilidade de que, em um assalto, o assaltante não queira apenas suas jóias e seu dinheiro, mas queira também, por vingança ou indiferença, levar as suas vidas. É o que basta.
Fonte: Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro: Conferência na Academia Brasileira de Letras, em 3 de julho de 2008. Civitas, Porto Alegre, v. 8, n. 3, set.-dez. 2008 - Michel Miss: Doutor em Ciências Humanas – Sociologia pelo Iuperj, professor do PPG em Sociologia e Antropologia do Ifcs/Ufrj e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana – Necvu-Ifcs/Ufrj, Rio de Janeiro, Brasil.
Dizia-se com naturalidade que o Brasil era um país povoado por gente cordial, um país sem violência, um país pacifico. Talvez isso explique, em parte, a pouca atenção reservada a esse campo temático nas ciências sociais, quando nos Estados Unidos e na Europa Ocidental as pesquisas sobre a criminalidade alcançavam o seu apogeu acadêmico. Hoje sabemos, passados 30 e tantos anos, que havia muito de ilusão nessa auto-concepção que se tinha do nosso país. Afinal, nela, nós recalcávamos, como se estivessem superados, séculos de escravidão, séculos daquela escravidão que permaneceu vigente como uma das últimas do mundo a ser abolida.
Somos então levados a confrontar os fatores que, efetivamente, contribuíram para trazer de volta à consciência aquela violência que fazia parte da nossa formação social e que se encontrava por algum tempo esquecida, recalcada nas nossas representações coletivas.
Hoje não há mais quem possa dizer que o Brasil é um país pacífico. Hoje não há mais quem possa dizer que nós somos um povo cordial, que não conhece violências e guerras. Cordiais e violentos conseguimos de algum modo fazer conviver nessa antinomia, nosso atual dilema civilizatório.
Não é possível, não é imaginável que um país que tenha a capacidade de processar razoavelmente os conflitos e os crimes no âmbito da Justiça, assista à demanda, cada vez maior, hoje presente tanto na mídia quanto em expressivos segmentos da população, para soluções de força privadas ou para soluções de força ilegais (justiçamentos, tortura, fazer a justiça com as próprias mãos). Ao contrário do criminoso hegeliano, que realiza sua liberdade tanto ao cometer o crime quanto ao ser condenado a perdê-la, o que supõe uma trajetória racional-legal tanto do criminoso quanto dos procedimentos de criminação/incriminação que lhe condenaram, o nosso criminoso já perdera sua liberdade antes de cometer o crime e, ao cometê-lo, procura resgatá-la, atualizando-a no crime, identificando-se com ele, tornando-se seu sujeito potencial a ponto de, no limite, reconhecer-se em sua superioridade moral. Ao fazê-lo, no entanto, alienam-se completamente nos dispositivos que o as sujeitam ao Código Penal.
É comum no Brasil o sujeito ganhar o nome do artigo do Código que transgrediu: “171” (estelionato), “121” (assassino), “157” (assaltante), ”213” (estuprador), “12” (traficante) etc. A existência de antecedentes criminais em um sujeito sob julgamento, no Brasil, leva-o quase sempre à prisão provisória (que, no Brasil, é diferenciada por privilégios como o instituto da “prisão especial”) e pode ser decisiva para sua condenação, constituindo-se abusivamente em “prova” fundamental. Do mesmo modo, um sujeito em prisão provisória ou preventiva tem dez vezes mais chance de ser denunciado do que ter seu caso arquivado e três vezes mais chance de ser condenado do que absolvido (Vargas, 2004).
São também comuns as diferentes formas de “antecipação da pena”, através da prisão provisória, que pode ser prolongada até a sentença – o que pode, em casos de flagrante delito, levar anos.
Todo esse processo implica na existência de um intérprete virtual, um acusador último, que em rodízio ocupará as várias posições, mas que restará sempre crente de que ele próprio não cederá à sujeição.
O fundamento da existência desse acusador último é a naturalização da desigualdade social em proporções tais que parte da sociedade poderá defender a tortura e a eliminação física (judicial ou extra-judicial) dos sujeitos criminais, simplesmente porque está segura – imaginariamente – de que essa regra não será jamais aplicada a ela. Essa segurança ontológica, que lhe permite afirmar-se “pessoa de bem” ou “acima de qualquer suspeita”, é a contraparte necessária da sujeição criminal.
No entanto, a acumulação social da violência no Rio de Janeiro ganhou tal abrangência, que furtos, tráfico e crimes não intencionais (como atropelamentos) e mesmo suicídios passam a ser incorporadas na representação da “violência urbana”.
O caso do tráfico é especialmente relevante, pois lhe é atribuída a principal responsabilidade pelo aumento da violência, seja pelo suposto efeito das drogas em seus consumidores, seja pelos crimes que jovens pobres cometem para comprarem essas drogas, seja, finalmente, pelos conflitos internos a esse mercado. Nesse caso, sempre pareceu estranho que o mercado varejista de drogas, que no Rio de Janeiro desenvolveu-se nas favelas e outras aglomerações urbanas de baixa renda, incorporassem um recurso tão constante à violência, sem comparação em outras cidades de outros países.
Apenas no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, tornou-se comum uma extensa territorialização do comércio de drogas. Esses territórios, operados por traficantes varejistas, são constituídos, no Rio, pelos pontos de venda nos morros (“bocas de fumo”), defendidos por “soldados” armados com fuzis, metralhadoras, granadas e até, em alguns casos, com armas anti-aéreas, tudo isso em meio urbano, com alta densidade demográfica e constantes incursões policiais. Aos conflitos armados com a polícia, seguem-se os conflitos armados com outras quadrilhas, que tentam invadir e tomar o “território” do outro.
Nos últimos trinta anos, uma verdadeira corrida armamentista levou a uma concentração de armamentos de guerra nesses morros e favelas que até hoje ainda desafia a polícia e as forças armadas. Mas não há qualquer objetivo político ou coletivo em defender esses “territórios”, o interesse é apenas econômico e militar. Um viés “guerreiro” incorporou-se a essas redes de pequenos traficantes, que se enfrentam entre si e à polícia, demarcando-se por facções sustentadas por sua função como agências de proteção dentro do sistema penitenciário. São em geral jovens, com média de idade entre 15 e 19 anos, e raramente se entregam à polícia: preferem correr o risco da morte, num enfrentamento armado com a polícia, a renderem-se e ir à prisão.
Não encontro explicação melhor para isso que não seja o efeito perverso da sujeição criminal, que criou a desconfiança generalizada, entre traficantes e ladrões – a clientela principal das prisões brasileiras – de que “bandido bom é bandido morto”.
A acumulação social da violência continua no Rio de Janeiro, com a migração de parte dos jovens traficantes para o assalto a pedestres, ônibus e carros, e com o aparecimento de uma nova modalidade de “esquadrão da morte”, grupos de policiais militares que impõem a oferta de proteção em favelas e conjuntos habitacionais pobres, com a promessa de matar os bandidos locais, em troca do pagamento regular de uma mensalidade. Os moradores que se recusam à extorsão têm suas casas invadidas e depredadas, quando não são ameaçados de vingança. E esses grupos, chamados pela imprensa de “milícias”, pretendem substituir os traficantes, assumindo inclusive parte do comércio ilegal que esses praticavam.
Como muitos dizem, com frieza e satisfação, no Brasil, “Menos um!” quando matam um ladrão. Muitos também não avaliam que, ao fazê-lo, participam ativamente de seu assassinato e da indiferença em esclarecê-lo e punir seus autores. Tratam-no como alguém “que pode ser morto”, como no Homo Sacer de que nos fala Agamben. Participam, também, ativamente da possibilidade de que, em um assalto, o assaltante não queira apenas suas jóias e seu dinheiro, mas queira também, por vingança ou indiferença, levar as suas vidas. É o que basta.
Fonte: Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro: Conferência na Academia Brasileira de Letras, em 3 de julho de 2008. Civitas, Porto Alegre, v. 8, n. 3, set.-dez. 2008 - Michel Miss: Doutor em Ciências Humanas – Sociologia pelo Iuperj, professor do PPG em Sociologia e Antropologia do Ifcs/Ufrj e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana – Necvu-Ifcs/Ufrj, Rio de Janeiro, Brasil.
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