INFLUÊNCIA DE LÍNGUAS AFRICANAS NO PORTUGUÊS DO BRASIL

Como aconteceu de línguas africanas influenciarem tanto o português falado no Brasil? E, principalmente, quais situações permitem uma “africanização” da fala? A presença da mão-de-obra africana, e escrava, por quase quatro séculos, explica o fenômeno em âmbito nacional. Os bantos chegaram ao Brasil dois séculos antes dos ewes e três séculos antes da chegada dos iorubas; regionalmente, sua presença ganha relevo, já que o Nordeste concentrou grande parte dos latifúndios voltados para o plantio da cana-de-açúcar e o fabrico do açúcar para exportação, principal ocupação da mão-de-obra escrava.
Segundo Robert Conrad , no final do século XVIII (1789) as estatísticas estimavam que praticamente a metade da população brasileira era constituída de escravos. Essa cifra registra pequeno aumento no censo de 1817-1818, ultrapassando a casa dos 50% da população total.
Entretanto, o “estado atual da arte” não se explica somente pela chegada (e permanência) dos africanos no país; mas também, e principalmente, pelo lugar social então ocupado por esses contingentes populacionais: o da escravidão. Se assim não fosse, não identificaríamos hoje (como podemos identificar) uma série de referências pejorativas aos bantos presentes na literatura especializada e que pelo status científico que encerram são responsáveis por muitos dos equívocos e preconceitos que pesam sobre essas referências.

O menosprezo pelas referências do universo africano, e mesmo o tom de zombaria com que eram recebidas e percebidas pelos brancos brasileiros do século XIX, podem também se observar através do olhar estrangeiro, como na descrição que Henry Koster faz da eleição do rei do congo que teve a oportunidade de observar no nordeste do Brasil em 1814:

“no mês de março tem lugar a festa anual de Nossa Senhora do Rosário, dirigida pelos negros, e é nessa época em que se elegem o Rei do Congo [...] os escolhidos para esses cargos podem ser escravos ou negros livres. Esses soberanos exercem uma espécie de falsa jurisdição sobre seus vassalos, da qual muito zombam os
brancos [...]”



Outros aspectos observáveis no universo das manifestações populares, dos folguedos, podem aqui ser evocados como assimiladores e alimentadores dessa prática preconceituosa.

Alfredo Brandão estudando o folguedo Quilombo destaca que o torneio popular é uma festa puramente alagoana que relembra um dos fatos mais importantes da nossa história — a Guerra dos Palmares, e nota que ele termina com a destruição do quilombo e com os negros recuando batidos pelos caboclos, sendo vendidos e tendo sua rainha entregue a um dos maiorais da vila.

O universo das manifestações populares surge, assim, como outro rico campo de investigação não somente das práticas e da permanência dessas referências africanas entre nós, mas, particularmente, das hibridizações processadas que falam eloquentemente desses mesmos lugares sociais. É o caso do Guerreiro, que o mercado turístico consagrou, nos últimos anos, como folguedo símbolo de Alagoas; nesse caso, podemos observar as referências brancas ocupando o lugar destaque, a cabeça (através do chapéu na forma de igreja católica), sendo o chapéu o símbolo máximo da brincadeira segundo os próprios mestres, enquanto que as referências africanas localizam-se nos pés e, de modo geral, na corporalidade dos brincantes.

Arthur Ramos foi um dos primeiros, senão o primeiro, a perceber a importância dos negros bantos para a cultura brasileira. Numa outra obra16, ele observava que tais populações bantas se apresentavam elas próprias como o resultado de antigas mestiçagens, caracterizando assim um traço interessante desse grupo, a mistura. O interessante de notar é que no jogo das hibridizações, os referidos elementos africanos ocupam um lugar sobre o qual é interessante refletir. Nos informa ainda Arthur Ramos que a presença africana banto é assinalada em Alagoas (e também em Pernambuco, Maranhão, Minas Gerais e Rio de Janeiro) desde o início do século XVI, continuando até 1850, quando então o tráfico fica legalmente proibido no país.

Os 250 anos, portanto, de entrada contínua desses contingentes no Brasil, sem esquecer que, mesmo após a proibição, o tráfico ilegal de escravos, ainda que tenha diminuído, continuou uma constante de norte a sul do país, com registros, inclusive, em Alagoas, segundo nos indica Abelardo Duarte.

Os bantos que aqui aportaram nesses mais de 300 anos de escravidão eram de grupos distintos: de Angola e do Congo na maioria das vezes, mas também da Guiné, de Cabo Verde, de São Tomé, da Costa da Mina, da Costa dos Escravos, de Moçambique etc., e eram genericamente chamados de angolas, benguelas, cabindas, congos, moçambiques.

Entretanto, mais que assinalar esta estatística expressiva da presença de negros bantos em território brasileiro e de demonstrar a prática mestiça de suas formas de ser e estar no novo mundo — fato já largamente observado por tantos especialistas no assunto voltemos ao objetivo principal deste artigo, e atentemos, então, para o lugar social que as palavras surgidas dessas influências, ou dessas misturas lingüísticas ocupam na estrutura do falar nacional e, mais especificamente, do falar alagoano.
bservando de perto essas palavras de origem africana, o que se percebe é, inicialmente, o caráter informal que a regem. Situadas preferencialmente no campo da fala e não naquele da escrita, estão em perfeita consonância com a característica mais evidente, a que, igualmente, garantiu sua distribuição em território tão amplo, a oralidade.
Mas não só. Destituídas das formalidades prescritas pela língua escrita, as palavras de origem africana que identificamos no nosso vocabulário ocupam outros universos ordinários, aqueles que se referem à comunicação mais direta e aos níveis menos especializados do exercício lingüístico.
Assim, nomeiam as expressões mais informais para a denominação de excrementos (catinga, catota, xixi, meleca), depreciativos e alcunhas difamatórias (babaca, brucutu, coroca, mondrongo, sacana, fuleiro, ranzinza, tribufu, cotó), a genitália e a sexualidade nas suas formas mais “chulas” (bimba, bunda, cabaço, cacete, xereca, xibiu, xota, xoxota, fiofó, siririca), estando presentes também naquilo que o senso comum entende como gíria (titica, babáu, bambambã, beleléu, biboca, galalau, lelé, lengalenga, fuzuê) e mesmo na denominação de algumas doenças (caxumba).

Sempre no reino da informalidade, outro aspecto importante a assinalar é que as palavras de origem africana que constituíram o português falado no Brasil se referem a formas de tratamento que denotam relações de proximidade e respeito, quiçá de carinho (mano, xodó, babá, iaiá), expressas na forma de substantivos (cafuné, dengo) e de verbos (paparicar, nanar).
Evidentemente os exemplos não param aí. As palavras de origem africana invadem igualmente os reinos da gastronomia (vatapá, canjica, cachaça, caruru, moqueca, sarapatel, munguzá, fubá) da toponímia e da antroponímia alagoana (Cambona, Quitunde, Sabalangá, Dandara, Zumbi); da fauna e da flora (angico, andu, jiló, caboje, calango, catenga, marimbondo) e mesmo o curioso campo das denominações identitárias elas visitam (cafuzo, cambembe, mazombo, matuto).
O interessante a observar é que o lugar ocupado por essas palavras na estrutura da língua portuguesa não é aquele da erudição, nem do jurídico, tampouco do científico. O lugar ocupado pelas palavras africanas no linguajar alagoano corresponde a outros lugares sociais, isto é, lugares econômicos e culturais, onde as “heranças” transitam, hierarquizadas.
Para concluir essa breve reflexão, consideremos que a invisibilidade das referências africanas no universo da língua portuguesa, se por um lado nos remete à já aludida evidência de sua incorporação aos níveis mais cotidianos da expressão oral, demonstrando assim a eficiência de um patrimônio elaborador da nossa singularidade linguística, por outro assinala essas presenças organizadas hierarquicamente, e, nesse caso, denunciando, em níveis discursivos, os entraves sociais de nossas definições identificadoras.




Referências Bibliográficas




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